HOSPITAL SANTA FÉ BELO JARDIM-PE

domingo, 23 de janeiro de 2011

Paixão assassina

´Depois que dei o primeiro furo nela, não me lembro mais de nada, mas 'Sua' Excelência falou que foram 16`, conta Jorge. Preso desde setembro de 2008, o homem de 49 anos, estatura média, pele morena, bigode bem aparado e mãos algemadas encerra assim o relato sobre como matou a mulher com quem se relacionava havia 14 anos. O processo revela, entretanto, que depois das estocadas com uma chave de fenda, à beira de uma estrada, à noite, no Recanto das Emas, cidade do Distrito Federal, Jorge ateou fogo nas partes íntimas de Denise, ainda com vida. Tamanha brutalidade destoa do sentimento que o confeiteiro dizia nutrir pela vítima. A tese da paixão, aos poucos, deixou de encontrar guarida nos tribunais, em laudos psiquiátricos e na própria sociedade. O que, então, leva homens e mulheres, na maioria das vezes acima de qualquer suspeita, a matarem pessoas para as quais fizeram juras de amor?
Adriano encontrou a mulher com outra na cama e assassinou-a a facadas: "Se ela não fosse minha, não seria de mais ninguém".Diario entrevistou homicidas passionais, promotores, defensores públicos, criminólogos, juízes e psiquiatras forenses. O resultado está na série Amor, ódio e morte, que será publicada aos domingos.
Para Luiz Carlos Illafont Coronel, psiquiatra forense da Associação Brasileira de Psiquiatria, o problema todo está no sentimento de poder sobre o outro. ´Evoluímos muito nas relações jurídicas, no uso do corpo, nos papéis sociais, mas do ponto de vista emocional ainda há fortemente o paradigma baseado na posse`, sintetiza o especialista. Ninguém sabe, ao certo, quantos dos 50.518 homicidas atualmente atrás das grades no país protagonizaram um crime passional. Mas não são poucos. Só nos últimos dias, 10 pessoas morreram pelas mãos de algozes com os quais, um dia, partilharam sentimentos nobres. Isso sem contar os episódios que não chegam ao conhecimento da sociedade.
Um perfil traçado por Luiza Nagib Eluf, procuradora de Justiça de São Paulo e uma das maiores estudiosas do assunto no Brasil, aponta o homicida passional como homens de meia-idade, inseguros, que consideram a mulher um ser inferior, ao mesmo tempo que a elegem o ´problema` mais importante de suas vidas. ´Quanto mais velho, mais inseguro, mais ciumento e com menor desempenho sexual. Revoltado contra a própria natureza e sentindo-se proprietário de uma parceira mais jovem, esse homem não aceita uma separação ou traição`, destaca Luiza. A explicação da procuradora se encaixa na análise que Jorge faz da própria história - menos sobre a diferença de idade de Denise, oito anos mais jovem que ele, e mais quanto à ira provocada pela traição da mulher. ´Houve desrespeito dela em sair com outro na minha frente. Eu cuidei muito bem dessa pessoa, construí uma casinha para ela, ajudei nos estudos`, cobra o homem.
Embora o arrependimento não seja claramente expressado por Jorge, que parece evitar palavras fortes, ele afirma ter vontade de voltar no tempo. ´Queria levantar aquela mulher e devolver a vida a ela. Às vezes, penso como posso ter atingido alguém de quem gostava tanto`, ressalta. Passados dois anos e meio do crime, ele garante que continua não se lembrando do momento exato do assassinato. Talvez porque tivesse misturado dois tipos de bebida alcoólica antes de assassinar a companheira. Psiquiatra forense famoso por laudos memoráveis como o de Chico Picadinho e do Bandido da Luz Vermelha, Antonio José Eça destaca ser possível, especialmente em um momento de embriaguez, a falta de recordação dos fatos. Mas desconfia desse tipo de relato. ´Muitas vezes, faz parte de uma estratégia de defesa`, critica o especialista.

Demônios
Com experiência de cerca de 300 júris como defensora pública, Leandra Paronuto afirma que pelo menos 90% dos homicidas passionais estavam bêbados na hora do crime, assim como 70% das vítimas. O psiquiatra Luiz Carlos corrobora a observação da defensora, apontando o álcool, a cocaína e o crack como drogas liberadoras. ´Elas liberam os demônios que temos dentro de cada um de nós`, afirma o médico. Ao contrário de todas essas evidências jurídicas e científicas, o exame toxicológico de Adriano deu negativo. Ele ainda se lembra do espanto da delegada de Santa Maria, cidade do Distrito Federal. ´Ela disse: 'Você não tem passagem, não usa drogas, é bom funcionário, por que não deixou essa mulher ir embora?'`, conta o cearense de 29 anos que mora na capital há 14. Depois de quatro anos do crime cometido, a resposta é a mesma: ´Fiquei cego`.
A história cujo desfecho terminou com o assassinato de Lorena, no início de 2007, começou bem antes. Ela conheceu Adriano na igreja que ambos frequentavam. Namoraram por um ano para, em seguida, casarem-se no civil e no religioso. Nos sete anos juntos, compraram um carro, uma casa financiada pela Caixa Econômica Federal e tiveram uma filha. A vida deles sempre foi considerada, até por familiares da vítima, equilibrada. Adriano, que tem o ensino médio completo, nunca ficou sem trabalhar. Orgulha-se dos 12 cursos que fez, quase todos na área de segurança. Lorena era caixa de uma drogaria. Ele conta que, certo dia, ao esquecer o crachá da empresa onde atuava como vigilante, voltou para casa, quando flagrou a mulher com outra na cama. Menos de um mês depois, ele fingiu que ia trabalhar e, de volta ao lar, a cena se repetiu. No meio da discussão, Lorena avisou que ia sair de casa para ficar com a outra mulher.
´Falei que se ela não fosse minha, não seria de mais ninguém. Depois daí, tenho um branco na minha cabeça. Os vizinhos disseram que me viram saindo de casa, de bermuda, descalço, sujo de sangue e com minha filha no colo`, recorda Adriano. Ele foi para a casa da mãe, contou o que havia ocorrido e se entregou à polícia. Condenado a 16 anos e seis meses de reclusão, Adriano obteve o direito ao trabalho externo e visita os familiares quinzenalmente. Em duas ocasiões, levou flores ao túmulo da ex-esposa. Quanto à filha, que nunca mais viu por imposição da família da ex-mulher, pretende ingressar com uma ação na Justiça para regulamentar visitas e dar a pensão alimentícia com o auxílio-reclusão a que tem direito. ´Vou explicar a ela que não sou um monstro`, planeja. O problema é que, muitas vezes, o próprio Adriano parece duvidar disso. Perguntado sobre quantos golpes deu em Lorena com a faca de cortar pão, ele diz: ´Essa é a única coisa que não gosto de falar. Minha mãe me contou, mas não acreditei que fiz isso com ela`. O laudo cadavérico: 29 facadas.

Nomes fictícios para preservar a identidade dos entrevistados e das vítimas.

DP ONLINE

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